O Gato e o Escuro

O mês de Abril é dedicado a "O Gato e o Escuro", de Mia Couto.

Comentário


É um livro fascinante, bem ao jeito de Mia Couto, inventor e artífice de palavras, explorador de sonhos, autor de uma escrita criativa, dono de um estilo muito próprio, que dá ao texto um sabor fantástico. “O Gato e o Escuro” atesta a originalidade e o poder criativo deste autor e delicia-nos com a sua maneira singular de contar histórias. Este conto, normalmente orientado para um público infanto-juvenil (eu diria para todas as idades), fala-nos de um gato amarelo, às malhas e às pintas, o Pintalgato, que, um dia, ficou completamente preto, pagando, assim, o preço da desobediência. Ora, Mia Couto conta-nos essa “trespassagem” de uma forma fantástica, ou não fosse o onírico, o sonho, uma constante na obra miacoutiana. Leia-se, a este propósito, um livro excelente sobre a obra deste autor, intitulado “O Fantástico nos contos de Mia Couto”, de António Martins, Papiro Editora, que nos proporciona um profundo e saboroso conhecimento deste autor moçambicano. Mas, como dizia, esse gatinho adorava passear na “linha onde o dia faz fronteira com a noite”. Embora sua mãe, receosa, lhe dissesse que nunca atravessasse para o lado de lá, “além do pôr de algum Sol” (repare-se na beleza desta metáfora que simboliza o desconhecido, o perigo), ele fingia obediência, mas a tentação era grande… “Namoriscando o proibido, seus olhos pirilampiscavam”. Achei esta expressão transcrita fabulosa, pela ponte que estabelece com as nossas vivências e pelo potencial semântico que os verbos encerram. Quem não se sente atraído por namorar o interdito? Quem não sofre as consequências de cair nas teias da desobediência? E atentem na carga expressiva e capacidade fotográfica do vocábulo “pirilampiscavam”. A sensação visual é poderosa, única!
O gatinho foi ganhando mais confiança e coragem e, um dia, não resistindo à atracção, passou para o lado de lá, “onde a noite se enrosca a dormir”. Quando “ousou despersianar os olhos” (notem como esta expressão empobrece o sentido da sinónima “abrir os olhos”) e viu que tudo era preto, inclusive ele, desatou a chorar, aflito e amargurado. Depois de um encantador diálogo entre o gatinho e o escuro, que mais parecia um desfile de queixas sobre as suas sortes e condições, apareceu a mãe do gatinho. O escuro lamentou-se que era feio e que todos os meninos tinham medo dele. A Dona Gata consolou-o, argumentando que os meninos não sabiam que “o escuro só existe é dentro de nós”. “Dentro de cada um há o seu escuro. E nesse escuro só mora quem lá inventamos.” “Não é você que mete medo. Somos nós que enchemos o escuro com nossos medos” – diz a gata ao escuro. Este diálogo encantador, construído de uma forma aparentemente singela, ilusoriamente pueril, mas incontestavelmente soberba, conduz-nos a um inevitável exercício de introspecção. Este momento magnífico tem o condão de nos fazer dialogar com as nossas vivências, de nos fazer reflectir e ler o mundo!
Continuem a ler o conto e deliciem-se com a beleza das personificações, a excelência das metáforas, a criatividade dos neologismos, a singularidade da escrita e a arte que está presente ao longo de todo o texto…

Lídia Valadares
19/04/04