Semana da Leitura

Sejam contadores mágicos!



Hoje, vou começar esta reflexão com um extracto do livro “Como um Romance”, de Daniel Pennac, que passo a transcrever.

“Caros bibliotecários, guardiões do templo, é excelente que todos os títulos do mundo tenham encontrado refúgio na perfeita organização das vossas memórias (o que seria de mim sem vocês, eu, cuja memória se assemelha a um deserto?), é prodigioso que estejam a par de todos os temas ordenados nas estantes que vos cercam… mas como seria bom, também, ouvir-vos contar os vossos romances preferidos aos visitantes perdidos na floresta das leituras possíveis… Como seria bom que lhes dessem a conhecer as vossas melhores memórias de leitura! Sejam contadores – mágicos – e os livros saltarão directamente das estantes para as mãos do leitor.”
Daniel Pennac, Como um Romance, p. 127

E é isso que procuramos fazer neste espaço: dar a conhecer livros que apreciamos, contos que nos seduziram, passagens que nos fascinaram, transmitir emoções e pensamentos que essas leituras nos suscitaram, partilhar a paixão que sentimos por esses livros… em suma, tentamos que os leitores se deixem contagiar por este amor pelos livros, possam encontrar os seus gostos de leitura e que os livros saltem das estantes para as suas mãos.
A este propósito, não posso deixar de registar, aqui, o meu testemunho sobre um extraordinário exemplo dessa magia de contar histórias: um contador, leitor/intérprete de leituras, que faz saltar livros das estantes para as mãos do leitor, num instante, assim, como quem estala os dedos!
A nossa “Semana da Leitura”, recheada de actividades diversificadas no âmbito da divulgação de livros, de escritores, da partilha de leituras e do incentivo ao prazer de ler e de escrever, terminou com um momento mágico, em que o Sr. Professor Adriano Guerra, no Auditório da Escola B. 2,3 de Lamego, leu o conto “O Beijo da Palavrinha”, de Mia Couto. Através das suas palavras, gestos e emoções, fomos conhecendo e vivendo a história de uma menina extremamente pobre, Maria Poeirinha, que tinha um irmão desprovido de juízo, Zeca Zonzo. Sentimos tristeza e revolta quando a menina se evadia em sonhos muito pequenos, pois a dura realidade logo lhos roubava. Ficámos pesarosos quando Poeirinha adoeceu gravemente e reflexivos quando o Tio Litorânio, recém-chegado à aldeia, diagnosticou que a origem de todos os males daquela família (pobreza, doença, palermice) centrava-se na falta de maresia, portanto a cura urgente estava no mar. Só que a menina estava tão fraca, tão vizinha da morte que a viagem se tornava impossível. E nós vivemos a angústia daquela família, impotente perante a doença. Todos os familiares ficaram sem saber o que fazer, excepto Zeca Zonzo, o tonto (que ironia!), que decididamente quis trazer o mar para junto do leito da irmã, rabiscando, com letra gorda, a palavra “mar”. Como Poeirinha já não conseguia ver, ele pegou carinhosamente nos dedos da sua mana e guiou-os por cima de cada letra da palavra. O Sr. Professor Adriano ilustrava perfeitamente a situação. E, assim, Poeirinha e nós, também, sentimos: as ondas do mar que sobem e descem no m; “uma gaivota pousada nela própria, enrodilhada perante a brisa fria”, no a e “magoámo-nos” no r duro e rugoso das rochas.

No mais profundo silêncio, ouvimos o marulhar do mar…
Os nossos corações ficaram inundados de lágrimas quando, no final, Zeca Zonzo, apontando para a fotografia da irmã, clamava: “Eis minha mana Poeirinha que foi beijada pelo mar. E se afogou numa palavrinha.”
Nós mergulhámos num mar de emoções que a magia do contador fez botar naquela sala. E o livro saltou da estante para as mãos de cada um dos presentes.
Neste momento, estou a recordar-me de um excerto sobre leitura que considero muito oportuno e vou partilhar convosco: “… a arte de ler é exactamente igual à de tocar piano ou qualquer outro instrumento. Como se aprende a gostar de piano? O gostar começa pelo ouvir. É preciso ouvir um piano bem tocado.” (Rubem Alves)
E nós tivemos o privilégio de ouvir um “piano” excelentemente tocado.
Bem-hajas, Adriano!



Lídia Valadares
16/05/2009